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Universidade Federal do Ceará
Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposição 1983.01 – Descartes Gadelha – O Santo A Fé O Homem A Terra – 27/10/1983

O Santo

São Francisco de Assis, fundador da ordem religiosa dos franciscanos. Itália-Assis 1182+1226. Filho do rico comerciante Pedro Bernardone e Joana picá de Boulermont. Batizado a princípio com o nome João, Bernardone resolveu mudar para Francisco, rendendo homenagem à França que o enriquecera e lhe despertava a sede de nobreza. Francisco associou-se aos negócios paternos, mas com sonhos de explorações cavaleirescas e revolucionárias, luta contra a Prússia e, depois (1206), dedicou-se inteiramente ao serviço de Deus. Viveu , a princípio, como eremita, mas rodeou-se, depois, (1208/1209), de discípulos decididos a viver com ele na pobreza evangélica. Em 1210, o Papa Inocêncio III aprovou a regra franciscana. Em 1212, com Santa Clara, Francisco fundou a Ordem das Clarissas. Doente, assistiu ao IV Concílio de Latrão e obteve a colocação de uma indulgência especial, dita da “Porciúncula”. Em 1220 regressa do Egito a fim de providências modificações introduzidas na ordem por seus vigários; pediu demissão do ministério geral, mas continuou sua prédica fraternista. Em 1221, fundou a Ordem Terceira Franciscana: modificou sua regra duas vezes a pedido de Roma. Em 1224, recebeu em Alverne os estigmas do Cristo. Já moribundo, compôs o poema (Cântico ao Sol). Sua lenda revive nos Fioretti e nos afrescos Giotto (Assis). Tendo vivido uma existência de profunda compreensão à natureza, a Igreja Católica, no ano 1225, enriquecendo e ampliando seu já populoso santuário, resolveu canonizá-lo como São Francisco de Assis. – No meio do sertão cearense, em Canindé, recebeu a consagração popular de São Francisco das Chagas de Canindé, festejado a 4 de outubro.


A Fé

O Sertão, sinônimo de abandono crônico pelo poder, onde a falta de tudo, principalmente de chuva, é fonte de negociações políticas ou de “dramáticas reinvindicações” (!)… O caos dos desastres econômicos gerador de desespero deságua no oceano da violência e do medo, em que nas águas turvas e ameaçadoras a Fé é uma ilha de esperança para os que não querem se vingar da violência institucionalizada com violência desesperada. Enquanto os senhores do poder podem e não querem, os senhores nativos não podem mas querem, pelo menos, o único e essencial direito, o de viver em sua terra. Não acreditamos mais nos irônicos e prosaicos paliativos estatais, depositam toda a esperança no Santo “NÓIS NUM SABE NEM REZÁ PRO SANTO MAS ELE SABE LÊ O NOSSO CORAÇÃO” ou “NUM SINCOMODE, ENTREGUE AO SANTO QUE ELE RESOLVE”… Esta fé instintiva e salvacionista se espalha com a poeira que o vento varre da seca; tudo fica impregnado de religiosidade e de participação; o homem mergulhado nesta paixão-Fé se beatifica e com ele todas as coisas se santificam. Muito longe de uma fé racional, a “fé no santo” dispensa o intelecto; basta “sentir fé”; isto é tudo.


O Homem

A simplicidade e a sabedoria são duas coisas interdependentes que somadas naturalmente formam a razão do real viver ou do amo Êxito; ora, São Francisco de Assis nos legou este magnífico exemplo de vida, portanto, o homem simples, telúrico, tira sua sabedoria da própria natureza sem procurar entendê-la (analisá-la) mas amá-la, chegando mesmo, através do despojamento, a se identificar com o santo de Assis, haja vista as promessas serem feitas com o uso de mortalhas em forma de hábito franciscano marrom, como no estoicismo, onde o homem trata de encontrar um refúgio em si mesmo, no reduto do seu ser pessoal, a fim de escapar aos golpes da sorte e das imposições exteriores, evitando e sublimando a dor; por isso as homenagens ao querido santo, através da sua imagem ou de símbolos diversos, propicia liberação da criatividade totêmica num profundo embasamento lírico nos altares, nos andores, nos ex-votos, nos cânticos, em cordéis, em “dramas” ou estórias de niná, etc.; São Francisco está incólume, carinhosamente enfeitado “com muita fé”. Viva o Santo!


A Terra

Canindé, no meio do sertão do Ceará, é um centro regional de peregrinação, onde está o santuário-basílica de São Francisco das Chagas. O culto remota ao início do século XVIII, quando os franciscanos, em suas viagens de apostolado pelo Norte e Nordeste, agremiaram os fiéis na Ordem Terceira de São Francisco das Chagas do Recife. Por volta de 1775, foi principiada a construção de uma igreja, à margem do Rio Canindé, cujas obras demoraram até 1796, quando se inaugurou o Santuário com a chegada da imagem do padroeiro. Em 1817 é criada a paróquia. Em 1898 o bispo de Fortaleza confia o santuário aos capuchinhos que levantaram o atual templo de 1910 a 1915. Os franciscanos da província de Santo Antônio assumem a administração em 1923, continuando até o presente. O santuário é elevado à Basílica (1925/1926). O tempo atual de romarias se estende de agosto até fins de dezembro, sendo estas especialmente numerosas durante a novena de São Francisco e preparação à festa do padroeiro, a 4 de outubro. Costumes peregrinos de origem remota ainda perduram nesse santuário, como o uso de mortalha como hábito franciscano para os romeiros e também o sacrifício de cabelo como símbolo de fecundidade-costume que remonta aos nossos antigos índios, tendo sido aos poucos assimilado e cristianizado. Durante a novena e festa, os peregrinos chegam a 35 mil por dia, e realiza-se todas as tardes com o painel do santo taumaturgo; muitos romeiros cumprem suas promessas nessa ocasião, carregando, por exemplo, pedras sobre a cabeça, andando descalços e de joelhos, com cruzes ao ombro, caminhadas de centenas de quilômetros, etc. O número de caminhões, durante os dez dias da novena, chega a 85 mil, fora outros meios de transporte.

Fortaleza, 18 de março de 1983
Maria Helena Cardoso


No princípio era o acaso que foi sendo imperceptivelmente substituído. E o verbo era a forma e a cor das idéias com que foi-se ordenando esse universo. O artista encontrou os materiais do seu canto, fez-se exato e contínuo e regeu o seu mundo de percepções e de significados: – a fé telúrica e o espírito universal de todos os santos – na mística de São Francisco de Assis; de todos os homens – no ingênuo sertanejo pagador de promessas; e todas as terras – na mais fértil em suor e esperança, Canindé – Canãa nordestina e romeira, oscilante miragem prestes a evaporar-se no calor de seus sóis, suas rezas e seu abandono e a ressuscitar todos os anos pela festa do santo milagreiro.

São Francisco de Assis não é mais o seu próprio despojamento: a vida franciscana é agora a de cada um desses homens sem água e trabalho, sem consciência social e sem identidade tangidos por qualquer força invisível e imaterial até as igrejas e as pedras, por todas as veredas – porque todos os caminhos vão a Canindé e toda marcha é uma romaria e toda promessa é uma resistência. O deserto povoa-se a cada ano de crentes e de bem-aventurados e deles é o reino dos céus o reino dos pobres, dos mansos e dos misericordiosos; o reino dos que choram e têm fome e sede de justiça, dos pacíficos e limpos de coração. A multidão de devotos sobe à montanha para ouvir o seu canto, deixar-lhes os ex-votos e sonhar todos juntos com o dia em que possuirão a terra. O Santo é Severino das Dores, José e Francisco. São todos os caboclos de todas as misturas de posseiros, índios e evangelizadores; a raça sertaneja, serrana e pescadora, os cabras da caatinga, da praia e do cerrado que castigam as mãos na enxada e no laço, na rede e na viola e cantam valentia e saudade por todos os que morreram para não ter enfim que ir embora. O Santo é o nome dado por eles a todo impulso e todo medo desconhecidos. É o que faz rezar e prosternar-se, roçar a terra e emigrar, esperar e cometer desatino; é também o que faz endoidar e fazer filho, embriagar-se e enfurecer-se, enfraquecer-se e ser possuído. O homem é aquele que se entregou à missão de construir um templo e semear entre as pedras, de falar aos animais e aos elementos e de penetrar de tal modo na natureza íntima de todas as coisas que obteve, afinal, decifrar seus mistérios e libertar-se.

A terra é a mulher castigada que já não é fecunda. Apartada de todas as chuvas e bênçãos, recolhida em si mesma, racha-se em longos caminhos onde os rastros vagueiam à procura e à espreita de escassos humores e acalantos. E as trilhas que abrigam fugitivos em emboscados cobrem-se de espinheiros e carcaças, filhos mortos, sementes abortadas, poeira e assombração. A terra é o imenso regaço de esperança, suporte do arco-íris, guardiã das enchentes vazantes, pasto da criação, chão de estrelas e lumes, cercado de borregos, poleiro de canários e candeeiros, terreiro de reizado e de baião. A terra é mãe do homem, mão-de-santo, é filha deles todos, companheira, todo começo e fim, bola domundo, giro na imensidão. O Santo, O Homem e a Terra em desalinho, numa folia enorme, epifania, recomeço, reconciliação. Telúrica elegia onde o artista constrói, de dentro para fora, sua festa de imagens no maior espetáculo de fé que já nos foi dado assistir e apreciar. Pintar com as cores do povo: as cores de homenagem são fortes, mesmo berrantes, portanto, vibrantes nas áreas de contraste. Os olhos acostumados ao colorido de “bom gosto” dificilmente aceita a combinação do verde com o vermelhão (cores complementares); já o povo livre de preconceitos colorísticos e estáticos, lança mão daquilo que esteja mais perto de sua força emotiva e instintiva, acontecendo o mesmo quanto ao olfato onde os perfumes sugerem as fragrâncias selvagens, fácil de notar nas lojas de produtos religiosos como é o caso das casas de umbanda etc… e nos animados forrós, quando na dança o suor se mistura com a alfazema de garrafa de cheiro ou o perfume “Royalbriá”. No Nordeste, principalmente nas épocas de seca, a luz do sol é diluente, ou seja, todas as cores tendem a um cinza-amarelado à medida que se distanciam da costa; daí a necessidade da cor nos seus contrastes geralmente complementares. Nos arruamentos e vilas distantes, talvez até a falta de recursos seja sublimada pelo valor da cor, através das bizarras fachadas e nos minúsculos jardins onde a arrumação das plantas é livre e exuberante, nas pinturas das jangadas de tábua e nas malhas do plano de rede. Nos altares, nos andores dos festejos religiosos, tudo segue à risca do arco-íris, o mais belo fenômeno visual do espectro, o qual sempre está presente na imaginação e oferendas santificadas. “Ontem choveu que deu até arco-íris!”, coisa Divina e rara prás bandas de cá.


Catálogo da Exposição Canindé 1983

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