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Universidade Federal do Ceará
Museu de Arte da UFC – Mauc

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Exposição 1990.01 – Centenário de Nascimento de Raimundo Cela – 19/07/1990

(Transcrito do Catálogo)

O Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará passa, atualmente, por um momento de revitalização que lembra sua fase áurea dos anos sessenta, quando de sua criação. Esse processo começou na atual administração, com a recuperação das instalações físicas e com a adoção de um arrojado programa de atividades que tem proporcionado presença recorde de visitas.

Assim, optou-se por uma forma dinâmica do uso de seus esforços, com o objetivo de atrair e tornar cativo o público amante das artes. Em decorrência, salas de exposição apresentarão sempre peças de acervo do MAUC em permanente rotatividade.

Para iniciar essa proposta, nada melhor que a comemoração dos cem anos de nascimento do pintor, gravador e desenhista RAIMUNDO BRANDÃO CELA, numa justa homenagem a esse ilustre sobralense premiado nacionalmente.

A UFC sente-se honrada em poder homenagear o renomado pintor, com uma exposição composta de parte da coleção do artista no MAUC, levando ao deleite do público essas produções artísticas que já formam o melhor patrimônio do Ceará.

Raimundo Hélio Leite
Reitor


Raimundo Cela – Um Artista Identificado com os Tipos Humanos Regionais

Difícil precisar uma opinião sobre um artista de formação acadêmica que tomou como tema a inspiração de grande parte de sua produção a figura do homem do povo, e que por isso ficou dividido entre pintar esse homem – como uma espécie de empatia – ou repetir temas acadêmicos, mitológicos, alegóricos e cenas da vida burguesa. Sua visão ficou mais concentrada na fidelidade às características físicas e regionais dos tipos humanos populares.

Poderá ter sido durante o período de formação acadêmica e das premiações chanceladas pelas mais distinguidas instituições oficiais de arte do país, que Raimundo Cela ficou como que marcado, indelevelmente, pela estética academicista, num momento de efervescência de novos conceitos estéticos modernistas como o expressionista, o cubista e o fauvista, entre outros.

Na Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, Raimundo Cela foi laureado com o “Prêmio de Viagem à Europa”, o que o submeteu, como se verá, a certos compromissos com a Escola.

“Como pensionista do Estado, o artista premiado ficava submetido a uma rígida legislação a qual tornava-o obediente a uma série de tarefas e obrigações, garantindo assim o sucesso e a manutenção do ensino acadêmico. Entre essas tarefas, estava a remessa regular de obras realizadas no exterior durante a sua estada. A feitura desses trabalhos artísticos – que justificariam o prêmio recebido – era determinado pela Congregação da Escola e, geralmente, consistia em um grande número de cópias depositárias no estilo neoclássico. Para garantir a harmonia deste campos simbólico, nenhum desvio desta linha doutrinária era permitido, sob pena do pensionista ter imediatamente suspenso o custeio de sua permanência fora do país”. (A trajetória do artista carioca na década de vinte” – Wanda Mangia Klabin – Catálogo do Projeto Arte Brasileira – Academismo).

Dois fatores fundamentais causaram um impasse na pintura a óleo de Raimundo Cela, provocando mudanças substanciais no seu estilo. Um refere-se à sua tímida submissão aos princípios estéticos do academicismo e o outro – os contrastes de luz e sombra, notadamente nas paisagens e marinhas, que só em alguns exemplos o artista conseguiu superar com grane maestria.

O Academicismo, que tanta tirania veio a provocar nos artistas, resultando na revolução dos pintores impressionistas, baseava-se em conceitos estéticos já pré-estabelecidos do passado, tornando-se uma conseqüência dos ideais estéticos do Neo-classicismo, que colocava como fundamento os princípios do Renascimento: controle do espaço a partir de leis científicas. A visão desse espaço ficava atrelada a outros princípios: perspectiva linear, perspectiva aérea, desenho do objeto, cor do objeto e proporções anatômicas.

Discípulo fiel da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro, e pleno dos princípios estéticos do academismo, Cela constatou – in loco – na sua viagem prêmio pela Europa, aplicação naquela natureza amena, das teorias sobre o claro-escuro na pintura. A natureza européia, iluminada por um sol ameno, empresta aos objetos, seres e paisagens uma lenta e gradual mudança das superfícies iluminadas para as arestas de sombra, isto é, os matizes e alterações que sofre a cor numa transformação gradual da luz para a sombra, na representação ilusionista das figuras e dos objetos que formam o espaço.

Nas academias e ateliês o matiz das cores era uma norma e um método impostos no aprendizado técnico da pintura. Disso resultava, na grande maioria dos casos, uma influência nefasta do ensino acadêmico, porque chancelado com o poder das instituições.

Assomado de todos os postulados acadêmicos e tendo a oportunidade de observar no ambiente europeu o resultado das teses assimiladas, Cela sublima – por assim dizer – o academicismo com todas as suas implicações com o belo. Imbuído completamente dessa estética, não lhe foi possível no seu reencontro com a natureza do Brasil, notadamente a do Ceará, fazer distinções entre os rígidos conceitos teóricos academicistas e a velha-nova realidade visual – a intensa luminosidade do Brasil e em especial o sol ofuscante do Ceará, com suas bruscas arestas de sombra.

… “Uma natureza áspera e crua como a nossa, em que o sol é uma agressão violenta de tudo, encurtando as distâncias visuais e diluindo as linhas do horizonte como em linhas superpostas de fogo. Este sol permanente e incrível, se é o nosso maior higienista, não é evidente o nosso melhor artista…E nos mares e praias o suplício é o mesmo, porque o ar livre tropical é de uma ingratidão artística desalentadora. Ou será pintado assim, duro e feio, ou será bonito e falso, com retificações e cores trazidas de cor dos climas dos prêmios de viagem à Europa”… (Rafael Barbosa – Jornal “O Globo” 31.10.1941 – Rio de Janeiro).

Capta-se desse conceito artístico da pintura relacionada aos climas tropicais uma visão unilateral da arte, mas concorre para um melhor entendimento das dúvidas e dilemas de Raimundo Cela diante da paisagem tropical.


Tradição e Renovação

Logo depois da revolução de 1930, movimentos e exposições de vanguarda eram mostrados no Rio de Janeiro e São Paulo. Participaram desses eventos artistas brasileiros e também estrangeiros refugiados de guerra que se somaram na difusão de uma mentalidade renovadora da arte em busca dos conceitos da modernidade. Para ilustrar o clima vivenciado nesse período, nos meios artísticos do rio de janeiro, cita-se o confronto entre Cândido Portinari engajado com as idéias modernas de crítica social na pintura e Oswaldo Teixeira, ligado ao passado acadêmico. É bom notar que ambos eram artistas oficiais, isto é, o Estado os indicava em casos de encomendas.

Cela, ensinando e convivendo com os artistas e vivenciando o meio artístico (oficial?) daquele período, permaneceu ligado à tradição.

Poderá ter sido sua intensa busca de disciplina técnica, aliada a uma exarcebada aplicação na execução e no trato com o instrumental da gravura, que bloqueou quaisquer outras inquietações artísticas que viessem aflorar no seu espírito. O tempo afastado dos meios artísticos, quando do seu retorno a Camocim, poderá ter deixado marcas e ficado no seu sub-consciente como uma espécie de tempo artístico congelado.

Ao voltar, um impulso interior parece tê-lo dirigido mais para uma cobrança a si mesmo, no sentido de tentar retomar aquele tempo que detinha as bases de sua formação estética – o academicismo. Isso poderá explicar a atitude do artista, sempre mais dirigida para o conservadorismo do que para a renovação.

Não vai aqui uma crítica a toda sua produção artística. Não é este o propósito. Apenas despertar a atenção para o fato de como o artista ficou dividido entre a pintura e a gravura. Recomeçou com um redobrado interesse pela pesquisa da técnica de gravar no metal, descuidando-se, ao que tudo indica, do exercício da pintura. Assim, permanece mais conservador na pintura, e na gravura consegue ser um gravador do seu tempo, podendo até mesmo ser considerado, senão um inovador, pelo menos um pioneiro.

As dificuldades do pintor acadêmico em encontrar uma solução para o problema da intensa luz tropical transparecem em algumas de suas telas. As sombras dos objetos e dos seres na pintura acadêmica eram projetadas dentro da lei da luz universal:

… “a luz que não é forte, mas ampla, envolve os corpos e fá-los graciosos…para pintar uma paisagem, é preciso que o céu esteja claro, mas que não haja luz direta do sol, que produz sombras duras e demasiado recortadas” (Leonardo da Vinci – “Tratado da Pintura”).

“A luz européia é velada e, em sua elaboração plástica, as sombras são cinzas coloridas. A luz americana é rutilante, diáfana, clara e, em sua elaboração plástica, as luzes serão brancas e as sombras negras” ( Angel Klenberg – “Imagem de uma arte jovem no Uruguai”- catálogo da exposição UABC – Uruguai – Argentina – Brasil – Chile, no Stedelijk Museum – Amsterdam e Fundação Calouste Gulbenkian – Lisboa).


Estilo

Assim, pôde-se entender um pouco mais a ausência de sombras em várias das paisagens ao ar livre de Raimundo Cela. Para compensar isto tentou marcar e definir com vigor os traços de contorno do desenho, procurando com este expediente emprestar ao quadro ema força expressiva. Decorre dessa atitude certa frieza nas suas paisagens tropicais. Em alguns casos, vai sofrer influência das sombras coloridas e das cores complementares explendidamente empregadas pelos pintores impressionistas. Resultou, então, uma pintura que deixa transparecer no colorido uma sutil influência do impressionismo com certo desprezo pela dominante tonal. Percebe-se a ausência da perspectiva aérea no relaxamento do uso dos tons quentes e fortes do primeiro plano e, em alguns exemplos, os tons frios se alternam indistintamente com os quentes, dificultando a sensação dos espaços perspectivos.

Cela marcou as figuras humanas e os animais com um linearismo acentuado, valorizando mais contorno das figuras do que a cor. O colorido transparente e aquarelado visto em quase todas as suas pinturas empresta um certo frescor e leveza, e a preferência pelas cores azul, violeta e verde revela em parte qualidades essenciais dos impressionistas que sobressaem da sua pintura. Devido ao seu comportamento de profunda timidez muito pouco usou o amarelo, o laranja e o vermelhão.

Ao pintar pessoas ao ar livre ou nas praias, com horizontes baixos, não utilizou, como os pintores impressionistas, as pinceladas de toques sutis mas é quase uma constante a presença da figura humana sempre muito delineada ocupando os espaços quadrangulares do primeiro plano, resultando disso um composição paisagística de horizontes altos. Ora pintava o motivo como sabia que ele fosse (cenários e acessórios), ora pintava como ele o via (figuras humanas). Em alguns exemplos pintava o objeto modificando-lhe a cor, inserindo-se desse modo em mais uma das principais características do impressionismo.

Como professor e artista não criou escola ou deixou marcas de seu estilo nos alunos.


Temática

Despontam como tema na sua obra os diversos tipos característicos do homem nordestino, pescadores, artesãos, operários de fábrica, estendendo-se aos campos da pintura histórica, sacra, alegórica, de gênero, natureza-morta e paisagens. A preferência pela captação realista desses assuntos ou figuras resulta numa pintura de conteúdo mais literário que imaginativo. Esta preferência poderia classificar sua obra como uma crônica visual do homem, dos usos e costumes do nordeste, por se acharem bem registrados os atribuídos etnográficos característicos da região, como a indumentária dos principais tipos humanos nordestinos. Seus estudos e pinturas captaram as mais variadas expressões e gestos dos caboclos e pretos velhos bem demonstram suas simpatias.

Destaca-se como exemplo dessa iconografia a numerosa coleção do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará (MAUC), composta de óleos, aquarelas, desenhos e gravuras. Várias dezenas de desenhos de tipos humanos regionais, estudos de cabeças, de mãos, de pés, nus femininos e masculinos, além de animais, trajes e planejamentos, estão feitos ora em simples esboços ou esmerados desenhos. Esses estudos eram necessários para exercitar uma disciplina, aprimorar a técnica e solucionar os problemas de anatomia, posições, planejamentos, agrupamentos etc. A grande maioria dos desenhos são simples registros, mas contam-se alguns dos apóstolos para a “Ceia Larga” de muito bem acabamento. Repetiu várias vezes o mesmo estudo até chegar ao desejado, aplicando em seguida, em alguns, a quadrícula numerada para auxiliar na ampliação, quando necessário.

Raimundo Cela foi um enamorado da figura humana, apesar de sua obra refletir também uma simpatia pelos cenários naturais circundantes. O gênero natureza-morta muito pouco o seduziu, uma vez que são desconhecidos quadros seus com essa temática, conhecendo-se apenas uma tela de pequenas dimensões no acervo do MAUC. Também pouco se interessou pelos animais, tendo alguns pequenos estudos onde aparecem burros, porcos e algumas aves. Frutas, metais, porcelana e outros componentes da natureza-morta ficaram de certa forma relegados a um plano secundário.


Gravura

Utilizando as técnicas tradicionais do óleo, aquarela, lápis preto, bico de pena, além de outras, Raimundo Cela criou e ensinou a feitura de estampas – impressão no papel da placa de metal trabalhada como o burril e o ácido – técnica com que ele melhor expressou o grande artista que ele soube ser.

O melhor e breve escrito sobre a sua obra gravada encontra-se no catálogo do I Salão Nacional de Belas Artes; “Três Mestres da Gravura no Brasil” de Orlando Silva.
O número de chapas não alcança duas dezenas. As estampas brasileiras são bem superiores às européias, mas a técnica não varia muito, sendo mais agressiva nas peças brasileiras. Dos trabalhos feitos na Europa há a destacar: Mendigos do Sena, Dia de Feira em Saint Agrève; das gravuras brasileiras, Circo, Bumba meu Boi, que tem algo de fantástico dado pela desproporção entre as figuras, pela deformação da perspectiva e ainda pelo contraste das figuras estáticas da esquerda com o movimento das que ficam à direita da gravura. A ressaltar ainda, e de modo especial, o Engenho, no meu julgamento sua melhor estampa.

A técnica empregada na feitura de suas chapas sempre me desafia a um estudo mais profundo de sua obra, para ter a resposta, ou não, a uma série de indagações. A principal seria a seguinte: por que um professor de gravura em metal, por longos anos só usou uma técnica em sua obra gravada. Ainda a usou do modo mais simples possível, nunca há morsuras sobrepostas. Se uma gravação não agrada, a chapa raspada, rebaixada até a profundidade do traço e, ás vezes, novo ataque de ácido é feito nesta superfície.

Podemos ver marcas evidentes do raspador no céu de “Jangadas do Mar”, no canto inferior esquerdo de “Casa de Vaqueiro”. Em “Fundição” duas larguras de traços são constatadas, e morsuras paralelas na calça do operário parecem evidenciar a trama de um tecido. Possivelmente usou lixa para abrir pontos na cera que protege a chapa para que o ácido não a atinja, em “Viela”, “Jangadas para o Mar”, “Mendigos no Sena” e em “Fundição”. A estampa sua em que se nota água-tinta mais facilmente é “Bumba meu Boi”, na árvore que fica no canto superior direito.

José Roberto Teixeira Leite escreveu comentário sobre a sua gravura em “A Gravura Brasileira Contemporânea” – Rio de Janeiro – 1965 (Raimundo Cela: Um Pioneiro Esquecido)… “Infelizmente a esse gravador admirável, ainda não se faz toda a justiça, sobretudo devido a preconceitos de ordem estética dos que pensam poder julgar o artista gráfico aprioristicamente, em razão das características conservadoras de sua pintura”.

… “e quem escreve essas linhas ao se deparar pela primeira vez com a obra gravada do artista, a tal ponto viu-se impressionado, que se sentiu na obrigação de organizar no Museu Nacional de Belas Artes que então dirigia, uma Sala Especial Raimundo Cela (1964)”.

Por ocasião da exposição de 28 telas de Raimundo Cela na Casa de Juvenal Galeno (O Estado) -27.08.1944 – Fortaleza – CE) afirmou Chabloz: “É pena que na exposição da Casa de Juvenal Galeno não figurem as aquarelas e águas-fortes de Raimundo Cela. Com efeito, esses dois gêneros difíceis e exigentes revelam mais ainda do que os óleos as grandes qualidades de estilo e sensibilidade do artista”.

As citações e textos aqui transcritos sobre sua obra gravada têm como finalidade evidenciar o grande mestre da gravura e destacar a admiração dos críticos de arte do país sobre as suas renomadas gravuras em metal.


Pintura

Raimundo Cela executou, por encomenda, dois grandes painéis que se encontram na cidade de Fortaleza; um de tema alegórico “Libertação dos Escravos no Porto de Fortaleza”, outro, de conteúdo religioso “Ceia Larga”.

O primeiro (óleo s/tela – 4 x 2) foi encomendado ao artista pelo Governo do Estado para o Palácio da Luz, hoje Academia Cearense de Letras. Fato curioso é que a elaboração, em 1938, dessa alegoria da libertação coincide com os ideais de redemocratização do país nos anos 40.

No conjunto da cena, destaca-se em primeiro plano, uma jangada que aporta nas areias da praia e traz na proa a figura idealizada de uma mulher com vestes greco-romanas, simbolizando a liberdade. Em segundo plano, atrás da figura da liberdade aparece como reforço simbólico e apoio composicional uma outra jangada de vela enfunada, sendo empurrada para o mar por jangadeiros, numa atitude alheia ao inusitado evento. Do lado direito encontra-se um grupod e abolicionistas (José do Patrocínio, Maria Tomázia, Dragão do Mar, Isaac do Amaral, Alfredo Salgado, entre outros), dispostos em filas uma atrás da outra. À esquerda, escravos arrumados de maneira convencional. O horizonte da paisagem está delimitado pela elevação de montanhas que tocam o personagem, dando a impressão de que ele levanta com a cabeça uma parte da linha desse horizonte. Escravos libertos à esquerda e os abolicionistas e fidalgos dispostos à direita dividem mais do que integram os segmentos sociais. As expressões fisionômicas de quase todos os personagens não transmitem o júbilo e o contentamento que o evento transmitiria. Destacam-se, porém a expressão e a atitude piedosas de um preto velho, de mãos postas, que se coloca á frente do grupo de escravos. Em toda a cena nenhuma sombra é projetada, mesmo quando se constata a intensa luminosidade de um amanhecer despontando no horizonte. Os personagens e objetos estão delineados de maneira precisa, mas com pouca volumetria. Uniformidade de tons neutros sempre tendendo para os violetas claros e ausência completa das sombras que as luzes dominantes projetariam subtraem do conjunto certa expressividade.

O segundo painel “Ceia Larga” (óleo s/tela – 4 x 2m – 1943) encontra-se no refeitório dos oficiais da Base Aérea de Fortaleza. Ao contrário da “Libertação dos Escravos no Porto de Fortaleza”, acha-se em perfeito estado de conservação.

Retrata o instante em que Cristo diz aos seus apóstolos: “um de vós há de Me trair”. Apresenta uma composição com simetrias acadêmicas, porém, de concepção mais flexível, revelando uma interpretação pessoal de cena evangélica, ao introduzir três mesas ao conjunto, uma para cada quatro apóstolos. Na mesa central está o Salvador, de corpo alongado, meio estático, enquanto alguns apóstolos mostram-se de costas. Magníficos desenhos dão aos personagens grande expressividade de gestos e atitudes, especialmente aos apóstolos Pedro, João e Mateus (em pé).

O tênue colorido em tons de laranja claro e branco é uniforme, não contrastando o fundo com os primeiros planos, apenas sendo ressaltados do conjunto os terras escuros dos desenhos das vestes dos apóstolos. A quase inexistência de contrastes de luz e sombra justifica a ausência de uma maior dramaticidade.

“Evangelho na selva” (óleo s/tela – 2 x 2) de temática histórica, está localizado na Academia Cearense de Letras. Revela um dos melhores momentos de sua pintura a óleo. No centro da composição, deslocado um pouco à direita, o Padre Anchieta de batina preta mostra um crucifixo com a mão direita levantada. Índios estão ao seu redor em posições e atitudes diversas. A composição é equilibrada por linhas e formas em diagonal (figuras humanas) com elementos e massas em destaque (galho de árvore atrás da cabeça de Anchieta, e lago, barco e capela) transmitindo movimento. O colorido denso, forte e exuberante é quase uma exceção na sua pintura a óleo, na grande maioria identificada pelos tons neutros aquarelados.

Não se sabe quantos retratos foram executados por Cela, apesar do enorme interesse que o artista nutriu pelo gênero, devido à sua simpatia pela figura humana. São poucos os retratos de pessoas conhecidas, mas inúmeros os de pessoas anônimas e dos tipos regionais. Nos retratos que faz de amigos chama atenção a capacidade em captar um modo natural do retratado e a expressão do olhar revelador dos estados d’alma.

“Preta Velha” sintetiza estas características deixando transparecer o psicólogo interessado em prescrutar no modelo seus mais recônditos anseios.

Cela cuidou das composições e enquadramentos de seus quadros com pouco rigor acadêmico. Fica difícil precisar quanto a fotografia com seus cortes bruscos o influenciou. “Rolando para a Terra (óleo s/tela) é uma composição com enquadramentos e cortes no conceito da modernidade, com a jangada em primeiro plano bruscamente cortada ao meio. Nessa pintura, o importante – como na fotografia – seria captar o instante dado (momento congelado). A expressão da tensão em que os personagens (jangadeiros) estão envolvidos, no momento em que rolam a jangada para a terra. A cena carece da energia e vigor que o instante deveria manifestar. O conjunto não revela movimento ou tensão devido à pouca volumetria e às tênues e claras sombras projetadas. Os jangadeiros estão destacados por um excelente e preciso desenho.

“Saída de Fábrica” (óleo s/madeira) é obra de elevado valor pictural. A pintura é exercitada em toda sua plenitude. Desaparece o desenho, marcado como sua grande característica, aparecendo o exercício de pinceladas coloridas que destacam formas e criam figuras. Trabalhando com plena consciência as cores complementares, transmite sensações atmosféricas. As luzes difusas do entardecer iluminam paisagens e personagens no momento em que eles deixam o local de trabalho. Emanam do quadro uma paz e uma quietude que induzem o expectador a reflexões ou devaneios.

Henrique Medeiros Barroso

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